Nomeação de secretário, avião da FAB e indicação de empresas. Como Chico interfere na Sesau

Chico articulou junto ao governador permanência de secretário, diz PF - Reprodução/Facebook/Chico Rodrigues

Mesmo após ter assinado contrato com a Secretaria de Estado da Saúde (Sesau), uma empresa pede ajuda a um senador para conseguir um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para transportar insumos de São Paulo para Roraima. Em tese, ao firmar contrato, a companhia já inclui a logística para trazer a carga. Ou seja, seria ilegal usar aparato público para benefício privado.

O parlamentar contatado foi Chico Rodrigues, flagrado com R$ 30 mil na cueca em outubro de 2020, resultado da Operação Desvid-19, que apura a interferência de políticos na pasta estadual. As investigações da Polícia Federal (PF) indicam que o senador se comprometeu a pedir a aeronave para favorecer a Quantum Empreendimentos, com a qual tem forte laço.

Francisvaldo Melo Paixão foi quem solicitou a ajuda da FAB ao senador. À época, ele era coordenador de Urgência e Emergência da Sesau. O agora ex-servidor foi à PF em 28 de abril de 2020 relatar os esquemas na secretaria, dois dias antes de a denúncia de compra superfaturada de respiradores, revelada pela Rádio 93 FM, ser divulgada.

Fontes do jornal indicam que ele usou a manobra, pois sabia que os esquemas estavam prestes a ser descobertos. Foi a partir das declarações de Francisvaldo que a PF iniciou as investigações.

Os relatórios da PF mostram que Francisvaldo escreveu a Chico no dia 1º de abril de 2020 a seguinte mensagem:

Francisvaldo: “Chefe Me ajude Com o Avião”

Chico Rodrigues: “Ok falando, Manda a quantidade, o peso e o volume em metros cúbicos. CORRETAMENTE”
O ex-coordenador encaminhou a planilha enviada por Jean Frank, responsável pela Quantum Empreendimentos, com indicações de peso, volume, quantidade de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) a serem trazidos para Boa Vista.

Depois, Chico encaminhou ofício com assinatura própria cujo conteúdo foi a solicitação ao ministro da Defesa para disponibilizar a aeronave. O título dado ao documento foi: “Disponibilização Emergencial de Aeronave para entrega de Medicamentos”.

REPRESENTANTE NÃO SÓCIO

Jean em foto com a esposa Samara Xaud e Chico Rodrigues – Foto: Reprodução/Facebook/Jean Frank

Jean Frank, que enviou as planilhas com as informações repassadas a Chico, representa a empresa de maneira ilegal, conforme a PF. É que o sócio da Quantum é Roger Henrique Pimentel, casado com Sandrea de Araújo Xaud, irmã de Samara Araújo Xaud, que até outubro de 2020, mês da operação, estava como assessora parlamentar de Chico Rodrigues.

Samara Araújo, casada com Jean Frank, recebia pelo Senado R$ 13,4 mil. Depois da operação, ela não aparece no quadro de pessoal do político. Esses vínculos, de acordo com a PF, sustentam os laços de Chico Rodrigues com a empresa.

DESVIO

A Controladoria-Geral da União (CGU) afirma que esse esquema criminoso por meio do direcionamento de licitações desviou aproximadamente R$ 20 milhões que deveriam ser utilizados no combate à Covid-19. Entre as empresas beneficiadas, está a Quantum Empreendimentos.

A empresa foi contemplada com dispensa de licitação para fornecer testes rápidos para o governo. Seriam 30 mil a preço unitário de R$ 161. Contudo, outra empresa havia enviado cotação mais barata, a R$ 141.

Por causa disso, a CGU identificou sobrepreço de quase R$ 1 milhão no valor apresentado pela Quantum. O favorecimento da empresa, que conseguiu quatro contratos no valor de R$ 9,1 milhões, foi a partir dos diálogos entre Jean e Francisvaldo.

OPERADOR

Segundo a Polícia Federal, Jean é o operador de Chico. A parceria em fraudes vai além da Secretaria de Saúde e chega ao Distrito Especial Sanitário Indígena do Leste de Roraima (Dsei-Leste), onde o senador também tem forte ingerência.

Um inquérito tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), devido ao foro privilegiado do parlamentar, para apurar esquemas na Saúde Indígena. O Ministério Público Federal (MPF) narra em documento obtido pela reportagem que:

“a possível interferência de Chico Rodrigues também é percebida na investigação que segue nos autos de relatoria da ministra Cármen Lúcia, em que possíveis crimes licitatórios ocorridos no Distrito Sanitário Especial Indígena de Roraima Leste são apurados […] há uma série de elos provenientes de diversas origens: depoimentos de ao menos cinco testemunhas, vínculos de afinidade e parentesco e conversas telefônicas interceptadas, que ligam o senador Chico Rodrigues a Jean Frank”.

Jean Frank já foi deputado estadual entre 2011 e 2014, eleito pelo PMN com 3.909 votos. Em 2018, tentou vaga para a Câmara dos Deputados, mas não conseguiu se eleger. Em lista apresentada ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ele afirma ter mais de R$ 1 milhão em bens, entre apartamento, imóvel rural e 90% do capital da empresa JBC Comércio de Produtos Químicos LTDA.

AVIÃO DA FAB

Convocado pela CPI da Saúde, o dono da Quantum, Roger Pimentel, que seria laranja de Jean Frank, afirmou em junho de 2020 que colocaram a empresa na “vala comum”, devido ao episódio da compra superfaturada dos respiradores no valor de R$ 6,4 milhões.

Segundo ele, a Quantum “fez tudo certinho” e entregou os materiais ao governo. Na mesma oitiva, ele reafirmou que a carga sairia de São Paulo em um avião da FAB. A declaração vai de encontro ao pedido da aeronave feito pelo senador Chico Rodrigues.

“Eu, pessoalmente, fui a São Paulo, cheguei lá no dia primeiro de abril. Eu sei que é o ‘Dia da Mentira’, mas, está aí no relatório de viagem, a minha passagem está aí, minha entrada no hotel em Guarulhos. Eu fiquei uma semana lá para conseguir fazer a logística de lá e embarcar para cá, porque, a priori, nos foi prometido que essas 32 toneladas de EPIs seriam embarcadas em um avião da Força Aérea, na Base Aérea de Guarulhos, que fica em frente ao terminal de carga da TAM. Só que esse avião não chegou; era um KC 390 da Força Aérea, que ia sair do Rio de Janeiro, ia chegar em Guarulhos no dia 7. Então, eu tive do dia primeiro ao dia sete para montar essa carga toda. Foi uma operação logística muito complexa, porque estava tudo parado em São Paulo. Até para pegar Uber estava difícil”, declarou à época.

SECRETÁRIO

Contudo, a influência de Chico Rodrigues está além do avião da FAB e da relação com a Quantum. Mensagens trocadas com o ex-coordenador Francisvaldo mostram que Chico foi decisivo para a permanência de Francisco Monteiro na Secretaria de Saúde. O apreço pelo nome de Monteiro era para continuar com os esquemas ilícitos, conforme a Polícia Federal.

A PF narra que, em 14 de dezembro de 2019, Francisvaldo relatou ao senador que o cargo dele estava ameaçado, assim como a permanência de Monteiro. No entanto, Chico garantiu que a possibilidade disso acontecer era “zero”.

No dia 3 de janeiro de 2020, Allan Garcez foi chamado pelo governador Antonio Denarium (sem partido) para assumir a secretaria. Um dos atos do novo gestor foi exonerar o adjunto Francisco Monteiro em 14 de fevereiro de 2020, pois percebia que ele atuava em esquemas de corrupção. Na mesma data, Francisvaldo comunicou Chico: “o atual secretário… Exonerou nosso secretário Monteiro, quem está dando total apoio às suas demandas”.

Chico e Monteiro, durante reunião em Goiás em novembro de 2019 – Foto: Reprodução/Facebook/Chico Rodrigues

No mesmo dia, fontes da reportagem indicavam que a exoneração seria revertida pelo próprio governador, o que ocorreu. No dia seguinte, Allan foi tirado do cargo e Monteiro assumiu. Essa troca teve interferência de Chico Rodrigues, segundo as investigações da PF. Prova disso foi uma mensagem enviada por Francisvaldo ao senador.

“Boa noite, senador… Parabéns pela articulação pela continuidade do Secretário Monteiro …. Agiu certo no momento correto … Os Servidores da Sesau sabem que o senhor teve peso nesse momento…”, disse.

Em março de 2020, o ex-secretário Allan Garcez voltou a afirmar em Brasília, durante depoimento à CPI da Saúde, que Denarium não cumpriu acordos políticos, e a autonomia garantida a ele e ao adjunto Rodrigo Santana não passou de promessa. Por causa disso, pediram demissão dos cargos.

“[Denarium] disse que não aceitaria e perguntou o motivo da decisão. Respondemos que nada do que havia sido combinado tinha sido honrado, sentimos que nos faltou apoio político. O governador então disse que aceitaria todas as nossas condições e nomearia todos os nossos indicados, assim como exoneraria Francisco Monteiro”, lembrou.

OUTRAS EMPRESAS

As investigações da Polícia Federal também indicam a relação de Chico com outras duas empresas: Haiplan Construções Comércio e Serviços LTDA e a Gilce O. Pinto. Gilce de Oliveira Pinto é casada com Júlio Ferreira Rodrigues, sócio da Haiplan, que conta com o apoio de Léo Rodrigues, sobrinho do senador.

Segundo o inquérito, Léo manteve contato com Francisvaldo. “Verifica aí irmão, já fiz encomenda estão segurando e preciso dar um posicionamento se vamos fechar ou não … Isso dos colchões. Veja o que você está precisando mais que tento resolver”, disse Léo. O mesmo assunto, de acordo com a PF, foi tratado com Gilce, o que sustenta a hipótese de ligação do sobrinho com a Haiplan.

“Assim, pelo teor da conversa, depreende-se que Leo Rodrigues faria intermediações na contratação da pessoa jurídica, demonstrando, inclusive, estar ciente da demanda a ser adquirida pela Secretaria de Saúde […] Tal constatação causa estranheza ao se considerar que o sobrinho do senador Chico Rodrigues não consta do quadro social da pessoa jurídica”, narra o MPF.

Em determinado momento, é o próprio Chico Rodrigues que cobra de Francisvaldo o pagamento da empresa Gilce. O diálogo usado pela PF para sustentar a interferência do político é o seguinte:

Chico Rodrigues: Você adiantou o pgto da Gilce/18—serviços?
Francisvaldo: Adiantei com a Edileuza e Monteiro … essa semana sai.
Chico Rodrigues: Só confirma o valor …
Francisvaldo: Da um total aproximado de R$ 2.6000.000. Vamos fazer o possível para pagar um valor próximo a isso.
Chico Rodrigues: Avisa na 2′ ok
Em outro trecho, o ex-servidor envia mensagem ao senador para dar explicações sobre um assunto relacionado à empresa Haiplan. Depois, em novo contato com Francisvaldo, Chico comunica que Gilce vai até a secretaria para conversar com ele.

“A conclusão que pode ser extraída, por ora, dos diálogos constantes do aparelho celular de Francisvaldo, é que Chico Rodrigues não apenas detém conhecimento de contratos firmados no âmbito da Secretaria de Saúde, como, inclusive, questiona sobre pagamentos efetuados à pessoa jurídica demonstrando contato próximo com a esposa do sócio da empresa contratada, a ponto de combinar encontros pessoais entre o servidor Francisvaldo e a representante de fato da Haiplan – Gilce”, escreve o MPF.

Uma conversa entre Francisvaldo e Gilce reforça a participação direta de Chico Rodrigues nas exigências pelos pagamentos. O ex-coordenador escreve que o senador esteve na secretaria para cobrar os valores para a empresa Gilce.

‘LAMENTÁVEL’

Roberto Livianu disse que caso de Chico Rodrigues é assombroso – Foto: Divulgação/Diário de São Paulo

Doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP), o procurador do Ministério Público de São Paulo e presidente do Instituto “Não Aceito Corrupção”, Roberto Livianu, disse em entrevista exclusiva ao jornal Roraima em Tempo que as situações envolvendo o senador Chico Rodrigues refletem uma “crônica trágica” diante de uma catástrofe provocada pela Covid-19.

“Percebemos que nem durante a pandemia, diante de mais de 420 mil vidas perdidas, há recesso para o ânimo dos corruptos. O desvio acontece nessas situações dramáticas. É lamentável observar o nome do senador Chico Rodrigues, que, tristemente, se tornou uma pessoa conhecida no país pelo encontro dos R$ 33 mil nas nádegas e na cueca”, comentou.

Questionado sobre como encarou a notícia do dinheiro encontrado nas vestes íntimas do senador, alvo da Polícia Federal, o procurador disse que o momento foi “delicado”, mas ponderou que o cinismo e a hipocrisia do senador em voltar ao Senado Federal foram o que chamaram sua atenção.

“Retornando à cena política como se nada tivesse acontecido, sem a devida responsabilização. Me chamou a atenção a falta de providências por parte da Comissão de Ética do Senado, como se não tivéssemos uma verdadeira e efetiva comissão de ética. O caso dele é assombroso, situação de desrespeito crônico à sociedade e ao patrimônio público, em que ele se comporta como se tivesse certeza absoluta da impunidade, de que as instituições não funcionam, como se tivesse certeza de que vale a pena transgredir a lei. É nefasto”, criticou.

Livianu disse que os esquemas na Secretaria de Saúde de Roraima se assemelham a outros do país, como direcionamento de licitações. Ele frisou ter percebido um movimento de criação de espaços garantidores de impunidade na lei, como a tentativa de diminuir o poder de investigação dos Ministérios Públicos.

“Na pandemia, a situação se torna mais grave, porque, em virtude da lei geral da quarentena, tivemos uma simplificação. Os contratos podem ser celebrados sem licitações. Do ponto de vista da sociedade, o patrimônio público fica vulnerável. Assistimos a uma avalanche de casos em todo o país. Barbaridades em Manaus, impeachment do governador do Rio de Janeiro, está prestes a sofrer impeachment o governador de Santa Catarina, vários secretários de saúde do país presos por desvios de contratações ilegais durante a pandemia. Há pontos semelhantes, sim”, avaliou.

CHICO

O senador Chico Rodrigues jamais intercedeu indevidamente em prol de interesse privado no âmbito de contratações no Estado de Roraima ou em qualquer outro órgão.

À época da operação da PF, os recursos destinados por emenda parlamentar à Covid-19 estavam, e ainda estão, nas contas do governo, o que comprova que nenhum valor foi desviado.

O dinheiro apreendido, cerca de 33 mil reais em espécie, é de origem particular, conforme já foi comprovado através do seu Imposto de Renda. Não é crime ter dinheiro lícito em casa.

Quanto às mensagens em que o Senador figura como interlocutor, todas, absolutamente, remetem ao interesse público, e a tentativa de suprir, na medida do possível, as carências da população roraimense, da forma mais rápida possível, para salvar vidas!

As investigações, já estão evidenciando que não houve desvio. Ainda em busca de esclarecer à população a inocência, o senador apoiou e assinou os três requerimentos que pediram a abertura da CPI da Pandemia, e se colocou à disposição da comissão.

É importante lembrar que, em 30 anos, o parlamentar nunca sofreu condenação e não possui processos de corrupção.

JEAN FRANK

Jean Frank afirmou que nunca foi ouvido pela Polícia Federal, e a empresa Quantum “salvou o estado” no início da pandemia. Segundo ele, o lucro da empresa “deve ter sido baixíssimo”.

“Depois que houve aquela operação na empresa com o Roger, verificaram que a empresa nunca recebeu. Estamos tranquilos. Não houve prejuízo ao erário público. Minha esposa esteve no gabinete do senador como assessora, normal, isso é comum em Boa Vista”, disse.

O ex-deputado frisou que não consegue entender o inquérito, e a única coisa que lembra é que a Quantum pagou frete para que a mercadoria chegasse. Questionado sobre o avião da FAB, ele declarou que desconhece, e acrescentou que não é operador de Chico Rodrigues na Sesau.

“As pessoas me conhecem. Comecei a trabalhar novo. Não preciso disso. No dia em que for ouvido, vou explicar para a Polícia Federal, apresentar documentação. Agora se o senador tem envolvimento com outras empresas o problema é dele. Espero que não seja uma questão política”, complementou.

GOVERNO

O governo informou que as investigações da PF foram motivadas a partir de denúncia do governador Antonio Denarium (sem partido), que constatou possíveis irregularidades em processos de compras de insumos e equipamentos.

“Diante disso, o Governo do Estado ratificou o compromisso com a transparência e zelo com o dinheiro público. E teve, com decisão judicial, a devolução de todo o recurso corrigido monetariamente, não gerando prejuízo aos cofres públicos”, frisou.

Segundo o governo, imediatamente o governador exonerou o Secretário de Saúde, à época, e outros oito servidores, e oficializou denúncia em todos os órgãos controladores estaduais e federais. “O governo aguarda o fim das investigações e confia na ação da Justiça”.

DEMAIS CITADOS

Procurados, o senador Chico Rodrigues e a empresa Quantum não enviaram respostas. O escritório do ex-secretário Francisco Monteiro não respondeu os questionamentos.

Esclarecimentos foram solicitados ao Ministério da Defesa quanto ao avião prometido, mas nenhuma nota foi enviada. Não foi possível contato com os outros citados. O espaço está aberto para manifestação.

Informações: Roraima em Tempo