Por falta de gestão e investimentos na maternidade, Roraima lidera mortes de grávidas por COVID-19

A falta de estrutura do sistema de saúde público no estado, com poucas UTIs concentradas na capital, e a falta de recursos nos municípios do interior, estão entre os principais agravantes para as mortes registradas - Foto: Divulgação

Um levantamento do Observatório Obstétrico Brasil Covid-19 apontou um dado alarmante que reflete o descaso da saúde estadual com as mulheres grávidas. Segundo os dados, de 39 grávidas que tiveram a doença desde 2020 até setembro de 2021, mais da metade, 21, faleceu, o que deixa o Estado à frente dos demais do país.

De acordo com reportagem da Agência Pública sobre a pesquisa, a falta de estrutura do sistema de saúde público no estado, com poucas UTIs concentradas na capital, e a falta de recursos nos municípios do interior, estão entre os principais agravantes para as mortes registradas.

O Estado conta com apenas uma maternidade, a Nossa Senhora de Nazareth, atualmente funcionando num local improvisado bem ao lado do Hospital de Campanha para tratamento de casos de covid-19, enquanto o prédio oficial passa por tardias obras de ampliação. E conforme já denunciado diversas vezes aqui no Boa Vista Já, a unidade de saúde é alvo de constantes denúncias envolvendo péssima infraestrutura e condições precárias às gestantes.

A reportagem trouxe casos estarrecedores, como o da esposa do enfermeiro Gracione da Silva Santos, que perdeu Almiza Prado Santos, de 37 anos, grávida, vítima da covid-19, em 6 de julho de 2020. “Foi um pesadelo”, resumiu.

Ele contou que a esposa, que era técnica em enfermagem, estava na quinta gestação e achou que os sintomas como tosse e cansaço eram comuns da gravidez. Mas, no dia 28 de maio, buscou atendimento médico na maternidade do Estado, onde ela trabalhava, e descobriu que teria de ser internada. 

“Ela chegou com a saturação baixa, com dificuldade de respirar, e logo decidiram que ela tinha que ficar no hospital. Eu fiquei desesperado, mas até ali não se sabia que era covid-19”, contou. Quatro dias depois, Almiza tinha piorado e teve de ser transferida para uma UTI. Foi levada para o Hospital Geral de Roraima, com suspeita de covid.

Até então, segundo Gracione, ela tinha feito dois testes, que deram negativo para a doença. Só o terceiro, feito quando ela já havia sido intubada, confirmou o diagnóstico. “Um dos médicos me disse que eles iam tentar de tudo para salvá-la, mas que era o caso de escolher entre a neném e ela, pois uma das duas não ia escapar”, disse. “Nossos filhos ficaram desesperados. Eles queriam a mãe. Choravam para vê-la”.

No dia 5 de junho, os médicos fizeram o parto de Almiza, que permaneceu na UTI. A recém-nascida também foi para a UTI, onde ficou por 52 dias. A mãe, que não chegou a conhecer a filha, piorou e faleceu um mês depois de ter dado à luz. “Não pudemos nem ver o corpo por causa do risco de contaminação. Foi a coisa mais horrível sepultá-la sem ter tido a chance de dizer pelo menos um adeus”, diz Gracione.

Obras de ampliação da Maternidade, além de tardias, seguem em ritmo lento

Grávida e com covid, mulher teve que ir do HGR à maternidade diversas vezes para tentar ser atendida

Um exemplo do descaso da gestão estadual foi de Vanessa Pereira, de 29 anos, uma verdadeira sobrevivente do caos na saúde. Aos oito meses de gestação, testou positivo para covid-19 e teve que percorrer 140 quilômetros de Caracaraí à capital, para receber atendimento adequado. Mas tudo o que conseguiu foi o descaso da saúde estadual.

“Eu cheguei de ambulância, mas na portaria mesmo me disseram que, como era covid-19, eu poderia contaminar outras grávidas, então tinha que ir para outro hospital”, contou ela à Agência Pública.

Após a primeira recusa, ela seguiu na mesma ambulância para o HGR, único da rede estadual com Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para casos graves de covid-19. Porém, novamente, foi barrada. Por estar grávida, teria que retornar à maternidade. “Voltei lá e recusaram de novo o atendimento, mais uma vez afirmando que eu poderia contaminar outras pacientes, que casos de covid eram só no Hospital Geral, e que ali eu não poderia ficar”, contou.

Ela conta que, de volta ao Hospital Geral de Roraima pela segunda vez, teve um primeiro atendimento, mas mais uma vez foi orientada a regressar à maternidade, onde foi barrada pela terceira vez. Felizmente, conseguiu atendimento com uma médica, mas que lhe disse que não poderia ficar ali muito tempo.

“Ela foi muito clara. Me disse: ‘Aqui nós só podemos salvar o bebê porque só tem UTI para bebê, não tem para adulto’. Então, mais uma vez voltei para o HGR. Eu sentia assim que o ser humano só vale o que tem. Só se você tiver uma condição financeira você é bem recebido, mas se você não tem, não é”, contou.

Prédio “improvisado” para atender as gestantes de todo o Estado

No HGR, o quadro clínico de Vanessa piorou, a começar que ela teve que esperar em uma maca instalada nos corredores do hospital. Só depois foi levada para uma área interna da unidade. Lá, foi colocada em um cilindro de oxigênio fixo na parede, o que não permitia que ela fosse ao banheiro.

Horas depois, no mesmo dia, Vanessa foi transferida para a UTI do HGR, deu à luz, de parto cesárea, ao filho Arthur, hoje com 1 ano. Porém, depois teve que ser entubada porque seu estado era crítico. O bebê, também no mesmo dia, foi levado para a UTI do Hospital Materno. “Eu nem cheguei a ver meu bebê, só fui conhecê-lo 21 dias depois, quando tive alta e já tinha saído da UTI, onde fiquei duas semanas. Eu achava que não sobreviveria”, conta.

“Devastador”

O infectologista Mauro Asato, que atuou na linha de frente no atendimento de pacientes em estado grave pela covid-19, resume bem a situação enfrentada não apenas pelas gestantes, como a toda a população do Estado quanto a saúde: “Devastador. Traumatizante”.

Com 40 anos de experiência, o médico explicou que os principais problemas enfrentados no tratamento geral dos pacientes internados por complicações da covid-19 no HGR foi a falta de pessoal treinado e de medicamentos. “Houve um momento em que ficamos desabastecidos de medicamentos para sedoanalgesia, bloqueador neuromuscular, usados na intubação, e antibióticos”.

O fisioterapeuta Josué da Costa, que atende no HGR, também relatou o caos vivido na saúde estadual. Ele disse que, entre os casos de gestantes internadas por covid-19, o que mais viu foram mulheres que perderam seus bebês e também morreram. Entre os pacientes em geral, incluindo as grávidas, alguns chegavam em estado mais crítico porque vinham de longe, principalmente de outros municípios. Houve também, segundo ele, muitos pacientes venezuelanos.

“Vinha muita gente do interior e em estado crítico mesmo, muitas vezes por causa das condições de transporte. Atendi várias pessoas que tinham vindo das cidades de Rorainópolis, Mucajaí, Caracaraí, e elas chegavam bastante debilitadas por causa do tempo de espera para chegar ao hospital”.

Ele também viu faltar insumos como luvas, máscaras N-95, aventais e sondas de aspiração em meio a picos de superlotação. “Colegas que entravam para 12 horas de plantão usavam fraldas para economizar equipamentos de proteção, porque assim não precisavam ir ao banheiro”.

O que diz o Governo

À reportagem, o Governo do Estado disse que “todas as pacientes com queixas obstétricas foram atendidas na Maternidade e nenhuma paciente foi impedida de receber atendimento”.

No entanto, o Estado reconheceu que, assim como outros estados brasileiros, Roraima “enfrentou dificuldades para manter o abastecimento de Unidades em virtude da falta de matéria-prima na indústria farmacêutica”.