Imigrantes venezuelanos encontram no empreendedorismo uma forma de sobreviver e ajudar conterrâneos

Imigrantes venezuelanos encontram no empreendedorismo uma forma de sobreviver e ajudar conterrâneos
Norelis, Juan Carlos e o casal Greslis e Bladimir são inspiração no mundo do empreendedorismo – Fotos: Rosi Martins, Lara Muniz e Arquivo Pessoal

O Brasil já recebeu aproximadamente 450 mil imigrantes venezuelanos. Os dados são da plataforma R4V, que reúne informações dos sistemas da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Governo Federal. No dia 30 de março deste ano, o país atingiu a marca de 100 mil refugiados venezuelanos, segundo dados da Operação Acolhida.

A lei brasileira reconhece como refugiado, o cidadão que deixou o seu país por perseguição ou devido a
uma situação grave e generalizada violação dos direitos humanos, como é o caso dos imigrantes que vêm do país vizinho.

Eles entram no Brasil pela cidade fronteiriça de Pacaraima, Norte de Roraima e vêm em busca da sobrevivência, ao fugir da crise humanitária e econômica que se instalou na Venezuela desde 2014.

Ao chegarem ao Brasil, muitos conseguem o refúgio por meio do governo brasileiro. Ainda assim, a maior parte não enfrenta dificuldade de obter a concessão, então procura emprego. Outros enxergam no empreendedorismo a saída para se instalar, permanecer no Brasil e, assim, ajudar seus familiares e conterrâneos que ficaram para trás. Dessa forma, montam pequenos negócios e se juntam aos mais de 20 milhões de empreendedores brasileiros da categoria na luta diária pela sobrevivência.

De acordo com o Mapa de Empresas elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) em parceria com o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), em abril o Brasil totalizou 21 milhões de CNPJs ativos e, destes, 93,7% são de microempresas ou empresas de pequeno porte.

Empreendedorismo e sobrevivência

Norelis Nathalie Madriz Falcon atuava no ramo de artesanato e turismo em Santa Elena de Uairém, fronteira com o Brasil. Contudo, a crise no país afetou o setor e ela teve que migrar para Boa Vista, capital de Roraima.

A mulher enfrentou momentos difíceis. Assim como perdeu a loja de artesanato de onde tirava o sustento da família, ela perdeu uma filha de três anos chamada Natasha Awekü.

Com apenas três mudas de roupa, U$ 30 e R$ 20 no bolso, Norelis veio para o Brasil e trouxe a filha mais nova, Maria Paula. Ao chegar em Boa Vista, contou com o apoio de mulheres que atuam na área de artesanato e que já conhecia devido ao trabalho.

“Fugi para Boa Vista com a minha filha com 20 dólares, 30 reais, três mudas de roupa e corri, corri muito porque foi uma coisa muito forte”, revelou.

Por meio de um sindicato, conseguiu um box no Centro de Artesanato da Orla Taumanan e montou uma loja chamada ProCriArt Awekü. Logo, a empresária pensou nos amigos artesãos que ficaram na Venezuela e entrou em contato para que voltassem a fornecer os produtos.

Mesmo com dificuldade de falar o Português, Norelis conseguiu montar a loja onde vende os artesanatos para um público de brasileiros. “Há pessoas que me escutam e dizem ‘ah, dá para entender’! Mas há outras que não entendem”.

O idioma é um desafio a ser superado diariamente durante as vendas. Norelis mistura o Português com o Espanhol, e fala o que ela chamou de ‘Portunhol’ e, assim, consegue atender cada cliente. Para os outros desafios, ela contou com apoios importantes no Brasil, como por exemplo, o do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas em Roraima (Sebrae-RR). Foi através de consultorias na instituição que Norelis adquiriu conhecimento para se tornar MEI e entender como funcionam os negócios no país.

“Os negócios para mim sempre foram muitos formais. Tanto quando tive agência de turismo [na Venezuela] como aqui. Imediatamente recorri ao Sebrae porque eu queria fazer isto formal. Isso não se pode brincar, eu tenho que buscar isto como uma forma de sustento porque eu não sei o que vai acontecer daqui em frente. E tenho a Maria Paula e tenho que ir em frente por ela”.

E complementou ao explicar o que significa para ela o apoio que recebe da instituição. “A gente não deixa de se capacitar no Sebrae. Tem sido uma ajuda emocional, psicológica e, claro, também para conhecer como funcionam as coisas aqui no Brasil. Então o Sebrae tem sido para mim o melhor parceiro”.

Conforme a Junta Comercial de Roraima (Jucer), órgão ligado ao Governo do Estado, a entidade tem o registro 1.472 MEIs, cujos sócios são imigrantes venezuelanos.

Apoio feminino

O Sebrae Delas, programa voltado ao empreendedorismo feminino, também é um meio pelo qual Norelis participa de feiras e onde conhece mulheres que, conforme ela, são inspiração para seu negócio.

“Eu pertenço ao projeto Sebrae Delas que tem o evento Expo Sebrae que é maravilhoso. E tenho conhecido mulheres empreendedoras maravilhosas que estão sempre nos motivando”.

O Sebrae Delas atende mais de 100 pessoas com capacitações e consultorias específicas para cada segmento das empresas acompanhadas pelo projeto. A gerente da Unidade de Competitividade Empresarial do Sebrae/RR, Eliene Farias, explica que, além disso, são realizadas ações de mercado como apoio a feiras e outros eventos, bem como suporte no processo de comercialização e desenvolvendo as competências de soft skil e hard skil. Tudo para que as mulheres empreendedoras tenham maior competitividade de mercado.

“Nesse processo nós temos muitas mulheres que são venezuelanas que chegaram ao Brasil e buscaram sobreviver por meio do empreendedorismo. Tiveram o empreendedorismo como necessidade para garantir uma renda e a gente tem acolhido diversas venezuelanas nesse sentido. Ajudando no processo de formalização, acompanhando o desempenho delas enquanto empreendedoras, ajudando nas redes sociais e com as consultoras especializadas que o projeto tem para oferecer”.

Outro apoio importante para a empresaria Norelis é a Feirinha do Parque do Rio Branco. Ela explicou que a Fundação de Educação, Turismo, Esporte e Cultura (Fetec) da Prefeitura de Boa Vista se encarrega da estrutura e ela leva os produtos para uma das barracas todas as sextas, sábados e domingos.

Superação e empreendedorismo

A crise financeira e dor da perda da filha foram fatos decisivos para sua vinda ao Brasil. Mas Norelis empregou seus sentimentos nos negócios e a homenageou na escolha logomarca da loja, que carrega o amor, a história, assim como o sobrenome da menina que não está mais presente fisicamente.

Norelis envolveu a letra ‘P’ de ProCriArt com uma orquídea que representa a Ala das Orquídeas, local onde a menina nasceu na Maternidade Nossa Senhora de Nazareth, em Boa Vista. Tem ainda o desenho do rosto dela, tirado de uma foto feita pela mãe. E as cores do arco-íris que representam a esperança e o nascimento da segunda filha que veio após a morte da primeira. Já a palavra Awekü significa ‘doce’ na língua indígena Pemon Taurepang Arekuna, etnia da família de Natasha.

E apesar das lembranças, Norelis segue com simpatia e destreza em atender os clientes todos os dias na ProCriArt Awekü.

Superando o preconceito

Assim como Norelis, Juan Carlos Ruiz também se viu obrigado a deixar seu país. E foi através da culinária que ele e sua família se estabeleceram no Brasil e conquistaram a clientela roraimense. Com experiência de 15 anos no negócio na Venezuela, eles vieram de Santa Elena de Uairén para Boa Vista em 2015 e montaram uma pequena lanchonete para vender, entre outros, o tradicional sanduíche venezuelano, o pepito. O alimento leva carne grelhada, molho e vegetais.

A família não teve dificuldade em encontrar os temperos que dão o sabor único ao pepito. No entanto, Juan teve que trazer uma amostra do pão que utilizam na Venezuela para que um padeiro pudesse produzir aqui em Roraima. Não ficou igual, mas segundo o empresário, ficou o mais aproximado possível.

“A gente tinha dois comércios lá bem sucedidos. Desde o ano 2000, a gente trabalhava nessa área de comida que é a mesma área que eu estou aqui agora. E a gente decidiu vir para cá para Boa Vista para tentar fazer a mesma coisa. Graças a Deus que muitos clientes que iam daqui para lá já conheciam nosso trabalho e quando viram a gente aqui ficaram surpreendidos, gostaram e foi correndo a voz”, explicou.

Mas com o tempo, os desafios foram chegando. Após o início da imigração em massa, a partir de 2017 Juan Carlos passou a enfrentar preconceito no Brasil.

“Temos tido lutas, temos tido percalços também. Na época quando começou a migração em massa que foi mais ou menos em 2017, aqui já estava com muito preconceito. As pessoas chegavam no lanche e falavam ‘esse aqui é venezuelano? Então bora embora’. Aí levantavam, falavam coisas depreciativas. Então a gente ficava um pouco apreensivo”, relatou.

A esposa de Carlos é brasileira e os dois filhos falam o português fluentemente, o que fez com que eles sofressem menos preconceito.

Hoje a lanchonete Rey do Pepito emprega sete pessoas e é de onde a família imigrante tira o sustento e ajuda a girar a economia local, pois eles vendem uma grande quantidade de produtos. E, para isso, estão diariamente nos supermercados da cidade para adquirir hortaliças frescas e os outros produtos da composição dos alimentos vendidos no local, assim como material de limpeza para manter o lanche funcionando com a higiene necessária.

Refúgio

Além de sustentar a família e movimentar a economia local, a empresa também se transforma em refúgio para conterrâneos. Além de empregar imigrantes, que são a maioria dos funcionários, a família ainda ajuda eles na aquisição de bicicletas para que possam chegar ao trabalho.

“Eu vejo que eles têm essa vontade de surgir, de sair para a frente. Eles topam trabalhar e não têm esse negócio de dizer ‘ai eu não posso’. E a gente vê que eles têm essa necessidade. Hoje estamos aqui com um casal. O salário que eles ganham não dá para muita coisa, mas a gente ajuda no que for possível. A gente empresta o dinheiro e depois vai acertando. Mas isso é uma forma de impulsionar eles”.

Inovar em um país diferente

Diferente de Norelis e Juan Carlos, Gresliz Zualy Aguilera não veio para o Brasil fugindo da crise humanitária da Venezuela. Estudante de Cinema na Universidade de Los Andes, em Mérida, em 2018 teve a oportunidade de fazer estágio na Universidade Federal de Roraima (UFRR).

Seu marido Bladimir Alejandro Zambrano também veio para o Brasil e cada um trabalhava em sua área de formação. Mas logo eles começaram a sonhar com o próprio negócio. O casal dependia disso para ficar junto e formar uma família. Então, tiveram a ideia de fazer donuts. Primeiramente, eles verificaram que em todo estado de Roraima ninguém ainda havia investido no doce.

Depois de longos meses de testes do produto, o casal resolveu abrir o negócio e começou a vender por meio de delivery. Essa foi a segunda inovação, porque a primeira já era o produto por si só.

Com o crescimento das vendas, abriram um quiosque em um dos shoppings da cidade. No entanto, a pandemia chegou e o local foi fechado por meio de decretos governamentais.

Entretanto, o casal foi resiliente e soube se adaptar à nova realidade. Assim, a empresa cresceu e eles abriram a primeira loja física no bairro São Vicente. E inovando mais uma vez, decidiram realizar o Donuts Day, assim como ocorre nos Estados Unidos. E na primeira sexta-feira do mês de junho, eles vendem a iguaria por apenas R$ 1. Na primeira edição, em 2022, as 500 fichas disponibilizadas foram vendidas em cinco minutos. A inovação ajudou a impulsionar o negócio.

Investimento na estética

O investimento no visual também é um diferencial nas lojas Migos Donuts. O jogo de cores utilizado e outros detalhes chamam a atenção. Como por exemplo, na segunda loja, aberta recentemente na avenida Ataíde Teive, em Boa Vista, a inovação começa pelas escadas que dão acesso ao comércio que fica no segundo andar, o que não é comum em Boa Vista. Estratégia essa pensada para atrair o cliente.

Ao subir as escadas, as pessoas se deparam com um mural de donuts, onde podem fazer fotos e postar nas redes sociais. Bladimir explica como como o casal pensou em cada detalhe no novo espaço:

Redes sociais

As redes sociais são forte ferramenta no empreendimento. Como profissional da área da Comunicação, Gresliz explora com destreza as plataformas para divulgar o produto. E como resultado, ganha cada vez mais clientes.

As lojas vendem cerca de 200 Donuts diariamente, meta essa alcançada após a primeira edição do Donuts Day em 2022. E com o aumento das vendas, o casal precisou comprar os ingredientes em maior quantidade.

“A gente roda quase toda a cidade para comprar. Meu esposo que faz as compras. É nelas que a gente vê o lucro da empresa. A gente faz toda a produção e tudo o que a gente compra é local. As caixas, por exemplo, muitas pessoas perguntam sobre as nossas caixas que são muito bonitas. E todo mundo acha que são trazidas de São Paulo/SP ou de Manaus/AM e nossas caixas são feitas aqui”, explicou Gresliz.

A empreendedora se refere às embalagens que utiliza para enviar os Donuts. “Poderia ser muito mais simples pedir a caixa de outro local que sai mais em conta, mas a gente tem que também movimentar a economia do estado, a economia local”, complementou.

O crescimento da empresa contou também com dois fatores: o apoio do Sebrae em Roraima e um financiamento.

“Bem no início a gente fez uma consultoria com o Sebrae, mas foi mais para observar o público. A gente também fez um teste do produto, mas a gente já vendia o produto que já estava sendo testado e avaliado pelos clientes”, disse a empreendedora.

O casal também dispôs de consultorias de um projeto de empreendedorismo da instituição sobre inovação. Conforme a empresária, isso deu ainda mais ideias para eles.

E, por fim, em 2022 ela conseguiu um crédito em um banco privado voltado ao crescimento e fortalecimento das pequenas empresas. Conforme Gresliz, o financiamento foi fundamental para a aquisição de itens que serviram para melhor equipar a primeira loja.

Norelis, Juan Carlos, assim como o casal Gresliz e Bladimir têm uma coisa em comum: o protagonismo empreendedor. Para eles, serve de inspiração para outros imigrantes sobre como empreender e sobreviver longe de sua terra natal.

Por Rosi Martins